No terceiro livro da trilogia Sprawl (Monalisa Overdrive) há um personagem denominado Gentry, o qual é obcecado pela ideia da forma do ciberespaço, evocando uma espécie de espiritualidade pitagórica. Ainda que nosso amigo Gentry seja tão somente um personagem fictício, sua obsessão pela forma da internet tem razão de ser, pois essa determinará o futuro de nossos dias.
Por muito tempo, pensou-se a internet como um outro mundo, uma dimensão paralela desbravada por certos entusiastas que pouco ou nada influenciava o mundo real. Contudo, d'algum modo as fronteiras se tornaram cada vez mais tênues a ponto de desaparecerem. Como a serpente do caos, a mítica Apophis em sua eterna batalha contra Rá, o caos cibernético-libertário está a devorar o sol da normalidade burguesa e promete mergulhar o mundo em algum tipo de ilustração das trevas, ainda que Rá esteja a lutar violentamente afim de manter o seu reinado, tal como predito pelo Indivíduo Soberano.
O que quer que se pense sobre o capitalismo, ele é um leão aprisionado. Fora domado na síntese socialdemocrata asimoviana, a liberdade é apenas o suficiente para que escravos – na ilusão de autonomia – produzam mais e mais. Mas à medida que esta autonomia prejudica os “interesses nacionais” a liberdade é cerceada. Vemos isso tanto nas investidas do judiciário tupiniquim contra a liberdade de expressão nas redes sociais, quanto nos esforços de guerra dos EUA, congelando e confiscando ativos de cidadãos russos, bem como na infantil cruzada neopuritana contra o TikTok. Contudo, a corrida tecnológica está a todo o vapor e rede mundial há muito está deixando para trás as estruturas obsoletas do velho Estado Nação comendo poeira.
Como na saga Freeza, a batalha entre Apophis e Rá é recheada de plot twist, reviravoltas e variações na escala de poder. Seja como for, o mundo já não é mais o mesmo. A cultura mainstream – que outrora foi sinônimo de normalidade – não é outra coisa senão uma bolha entre tantas, o mundo está cada vez mais tribalizado, fragmentado. A estabilidade de certas estruturas narrativas, roteiros de vida, carreiras e ofícios tradicionais: desapareceu; ao mesmo tempo surgem diversas promessas que almejam tomar seu lugar, e a maioria delas não dura mais que um ou dois tempos. De um modo ou de outro, estamos a nos livrar da “igualdade” propagada pela Revolução, o universo interior e o conjunto de referências das pessoas está se tornando profundamente desigual, o senso comum não é mais tão comum, uma providencial confusão das línguas vem para frustrar os planos das elites globalistas acerca do governo mundial. Mas ao mesmo tempo, essa nova Babel é um desafio a sanidade de muitos. Se não surgirem profetas e filósofos para instruírem o rebanho acerca dos desafios e oportunidades desta nova era, é provável que muitos se percam, e passem a prestar culto ao Leviatã de Hobbes afim de conservar o que não deve ser conservado, como os israelitas no deserto a chorar pelas cebolas do Egito.
O futuro é cyberpunk.


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