quarta-feira, 22 de janeiro de 2025
Neoreação, Cérbero e os turbantes amarelos
[...]Latia com três fauces temerosas,Cérbero, o cão multiface e furente,Contra as turbas submersas, criminosas.Sanguíneos olhos tem, o ventre ingente,Barba esquálida, as mãos e unhas armadas;Rasga, esfola, atassalha a triste gente.Uivam à chuva, quais lébreus, coitados!Mudam de lado sem cessar, buscandoDefensa e alívio, as almas condenadas.[....]- ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia, Inferno, Canto VI.
Fenômenos políticos são como aqueles chocolates de vending machine: ricos em açúcares para estimular em demasia, pronto para serem consumidos de imediato e com data de validade não muito estendida. Por isso não gosto de escrever sobre isso, fica um texto datado, descartável. Passados alguns anos, quem se importa? Basta ver como esse negócio de direita e bolsonarismo envelheceu mal pra caramba. E, no entanto, cedo a tentação de escrever algo sobre o trumpismo. Não porque ele em si mesmo tenha algo de valor, mas porque por trás deste há algum tipo de besta digna de figurar um bestiário cyberpunk. Falo da neoreação.
Escrevo objetivando não ser lido. Pelo menos não em demasia. A opinião letrada anda em um estado catatônico, como fossem baratas tontas, e não desejo acabar com isso revelando o segredo esotérico, a chave de leitura por trás do darkMAGA.
Ainda que não tenha estudado nada de mitologia grega, bem ou mal deve ter tido contato com a figura de Cérbero: o cão de três cabeças que guarda os portais do inferno. Peguemos emprestado essa imagem para descrever a neoreação, essa besta infernal - ou não, a depender do ponto de vista - de três cabeças. A primeira delas é o etnonacionalismo com todas as excentricidades e problemas típicos de suas manifestação anglo-saxã, a segunda é o libertarianismo, mais especificamente aqueles libertários que chegaram a óbvia conclusão segundo a qual: a democracia é incompatível com a liberdade, a terceira: os religiosos. Embora esse tipo de gente se odeie, há algo em comum a todas elas: são defensores de um tipo de ordem pré-iluminista, são inimigos mortais da Catedral - termo clássico da literatura neoreacionária - ou se preferir: do Sistema. Não se trata de uma integração, de um tipo de síntese integral, esses grupos continuam se odiando, continuam independentes, não tem nada em comum a não ser a oposição ao pacto social-democrata do pós-guerra, são três cabeças independentes, mas por um estranho desígnio da Providência estão unidas no mesmo corpo.
O termo Catedral não é suficientemente sugestivo? Vamos recuar no tempo, trocar a Catedral por Igreja Católica e esses outros grupos por quarquers, mórmons, adventistas do sétimo dia, testemunhas de jeová... Deu para entender que a lógica da neoreação é a lógica do protestantismo, onde o ódio mútuo e a divisão não obstam certa unidade? Contudo o adversário hoje não é a Igreja Católica. Os católicos tradicionais se veem obrigados a dividir lugares com hereges e pagãos na luta contra o Sistema, o Pântano, a Nova Ordem Mundial, chame como quiser.
A grande diferença de Trump para com outros tantos políticos bobocas é que, enquanto seus antecessores tinham medo da besta, ele está disposto a a brincar com ela. Isso pode vir a ser divertido, não? Imagine um pitbull de três cabeças vagando por aí livre de suas correntes kekekek
Da Grécia migremos a China, e pensemos nos Turbantes Amarelos; uma seita taoísta que falava sobre a uma alteração no mandato dos céus e o advento de uma nova ordem. A performasse militar desses malucos foi tão ridícula quanto os protestos de Charlottesville, contudo Cao Cao fez deles o seu povo. Não estaria Elon Musk tentando fazer o mesmo com relação à neoreação?
Tal qual os turbantes amarelos, seria o Cérbero neoreacionário uma manifestação de uma alteração nas cláusulas do mandato dos céus, uma alteração radical da ordem política e cultural do pós-guerra? Ou estamos diante de tão somente mais um arco filler que não tem relevância alguma na história?
De todo o modo, há algo que poder-se-ia dizer suficientemente claro: a neoreação é um fenômeno cultural protestante e qualquer tentativa de emular o movimento em solo brasileiro será um cômico fracasso, tal qual o Leão de Gripsholm.
Minha indiferença estoica e total desinteresse em tomar posição por não ver sentido algum nas agitações políticas mundanas me permite a observar o fenômenos com a frieza científica necessária para ver seu potencial disruptivo. O apoio ou a rejeição a neoreação não são os objetivos desse texto, mas tão somente a observação dessa estranha fera de três cabeças.
Salve sua alma. Stat crux dum volvitur orbis.
sábado, 4 de janeiro de 2025
Desesperança Política
[...] Para nós, um paliativo que prometa durar cem anos equivale à eternidade. Podemos até nos preocupar com nossos filhos, talvez com nossos netos; mas, para além do que podemos acariciar com estas mãos, não temos compromissos; e eu não posso me preocupar com os meus eventuais descendentes em 1960. [1]
O trecho acima é um diálogo extraído do livro O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, e ajuda a ilustrar a minha total e absoluta despesrança para com a política, pena que não é tão fácil de se memorizar quanto aquela atribuída a Keynes: "No longo prazo, estaremos todos mortos".
Nossa sociedade chegou a tal nível de degeneração que não pode ser revertido por mudanças pontuais, antes é necessário uma mudança radical. E mudanças radicais levam tempo para serem gestadas e sobretudo para produzirem seus resultados.
De que vale engajar-se em uma causa política que pode não produzir resultado algum, ou pior até produzir, mas você estar velho demais para beneficiar-se dela. Está disposto a gastar sua vida para cultivar um futuro que não pode acariciar?
A pestilência deste nosso tempo é intolerável, contudo não viveremos o suficiente para ver um mundo melhor.
Isso pode soar um tanto quanto depressivo para aqueles que não tem esperança nos céus, mas para quem tem fé isso pode ser libertador. Nos liberta de certos "compromissos" para com esta era, certa agitação infértil conduzida no sentido de tentar mudar o mundo. E assim temos tempo para dedicar-nos a religião. E se necessário acalentar nossa alma com a boa arte.
A busca ensandecida por manipular o curso da história e construir um futuro, leva a instrumentalização da religião e da arte, tudo é politizado, tudo é corrompido para servir à revolução. Mas quando se desvanece a esperança desse futuro, então, há espaço para que a arte e a religião resplandeçam com toda a sua beleza dramática e sua alva pureza.
[1] DI LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi. O Leopardo; p. 37 .
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