Deus Todo Poderoso, que nos criou à Vossa imagem e nos indicou o caminho do bem, do verdadeiro e do belo, especialmente na pessoa divina de Vosso Filho Unigênito, Nosso Senhor Jesus Cristo, permiti-nos que, pela intercessão de Santo Isidoro, bispo e doutor, durante nossas navegações pela Internet, dirijamos nossas mãos e nossos olhos apenas àquelas coisas que Vos sejam aprazíveis e que tratemos com caridade e paciência todas aquelas almas que encontrarmos pelo caminho. Por Cristo Nosso Senhor. Amém.

domingo, 31 de março de 2024

Cristandade Ancap

Após o chamado de Deus, Abraão deixou a cidade de Ur acompanhando por sua esposa, seus servos e seu sobrinho Lot, vagando pelos desertos até Canaã, a terra que o Senhor lhe prometeu. Essa é a imagem bíblica mais próxima que temos de algo como o ancapistão: um homem rico vagando pelo mundo com seus bens, não subordinado a Estado algum, o Patriarca que governa sua casa sujeito tão somente aos leis do Senhor seu Deus. Tais configurações se manteriam por duas gerações, nem Isaac nem Jacó estavam ligados a algo como uma pátria, um governo, um Estado Nação, mas eis que veio a fome sobre aquela terra e a casa de Israel imigrou para o Egito, donde ficaria sujeita ao governo dos faraós até Moisés. E daí para frente a história bíblica foi uma história estatal.

Samuel referiu todas as palavras do Senhor ao povo, que lhe tinha pedido um rei, e disse: Este será o direito do rei que vós há-de governar: Tomará os vossos filhos, pô-los-á nos seus carros, fará deles moços de cavalo, e correrão diante dos seus coches. Fará deles seus tribunos, seus centuriões, lavradores dos seus campos, segadores das suas messes e fabricantes das suas armas e carroças. Fará de vossas filhas suas perfumadeiras, cozinheiras e padeiras. Tomará também o melhor dos vossos campos, das vossas vinhas, dos vossos olivais, e dá-los-á aos seus servos. Também tomará o dízimo dos vossos trigos e das vossas vinhas, para ter que dar aos seus eunucos e servos. Então clamareis ao Senhor, por causa do rei, que vós mesmos elegestes, mas o Senhor não vos ouvirá naquele dia, porque vós mesmos pedistes um rei. (1Sm 8, 10-18)

Com a vinda de Cristo, eis algo novo! Ainda que Nosso Senhor seja rei, seu reino não é deste mundo. Rejeitada pela sinagoga e perseguida pelo império, a Igreja surge e se desenvolve a margem do Estado e das instituições oficiais. É um organismo não estatal multinacional, uma assembleia de pessoas que se unem e passam a contribuir coletivamente por livre espontânea vontade, sem qualquer coerção externa. Na verdade, até apesar da coerção externa: as cruéis torturas infligidas pelo tirania dos césares romanos não foram capazes de abalar a vontade inquebrantável dos mártires. A Igreja vence o Estado, até que acaba fundindo-se com ele. E essa fusão moldará sua identidade nos séculos que se seguiram. O poder temporal, as estruturas da máquina estatal, a força do Leviatã, os recursos, as armas, tudo isso foi posto à serviço do Reino de Deus. Mas esse tempo acabou, cortaram a cabeça dos reis e expulsaram a Igreja da vida pública, eis que é necessário reaprender a viver a margem do Estado.

Já são mais de 200 anos desde a Revolução Francesa, todavia a maior parte dos fiéis parece não ter aprendido a lidar com o assunto. Os progressistas (os quais nem considero eu católicos), procuram ceder na doutrina para ter parte na governança do mundo laico, os conservadores e tradicionalistas alimentam fantasias de restauração, e - flertam com tanta besteira... -  assim se afundam em lutas políticas cujos resultados são risíveis. Por que não abrir mão desse sonho de reconquistar o Estado e aprender viver a margem dele, minorar seu poder, numa espécie de Cristandade Ancap? Ainda que de fato o Estado Cristão seja um ideal, há que se fazer um bem bolado quando este ideal é hoje inalcançável, não?

Estou lendo recentemente um clássico cyberpunk chamado Snow Crash, fiquei maravilhado com universo descrito por Neal Stephenson:  as micronações que funcionam em esquema de condomínio, o metaverso, a dinâmica de uma economia hipercapitalista de plataforma, as armas (qual é o homem que não gosta de armas? Quem não tem espada, que venda sua túnica e compre uma! Aliás esse negócio de espada é algo meio vintage, porque não uma 38?), a forma como o indivíduo pode facilmente aparatar-se do destino das falhas escolhas coletivas e discernir seu próprio caminho. Tudo isso soa tão mais belo em um tempo onde a nação em que vivo se degradada tanto mais, a janela de liberdade é cada vez menor, e políticos bobocas alimentam devaneios comunistas cujo resultado não é outro senão a miséria. Haveria tantas oportunidades para Igreja em um futuro atlantista, aceleracionista, hipercapitalista, cyberpunk, além de que este cenário é bem mais factível que uma nova cristandade estatal...

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Depois de ler esse texto, na certa algum leitor estará tentado a enviar-me links de uns três ou quatro podcasts com duas horas de duração cada, argumentando sobre os erros do anarcocapitalismo e maldizer-me nas redes sociais. Convido-o a reler o texto com um pouco mais de senso de humor hihi, meu intento é menos pregar alguma ideologia ou modelo de sociedade, do que abrir a mente de meus irmãos de fé para pensar formas de ação para além da política e das instituições visíveis. 

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